UM FILME PARA LER. UM LIVRO PARA ASSISTIR.
FERRO, Marc. Cinema e História. São Paulo: Paz e
Terra, 2010.
Marc Ferro foi o historiador pioneiro
sobre o tema cinema e história. Seu livro é uma coletânea de textos escritos a
partir da década de 1970, no qual o autor tece paralelos entre a história e as
obras fílmicas, mostrando que as mensagens implícitas estão por toda parte nos
filmes, mesmo contra a vontade dos cineastas.
Hoje, o filme é uma fonte, tanto nos
arquivos como nas pesquisas. Algo impensável na década de 1960, quando o tema
foi cogitado, causando ebulição nos meios acadêmicos.
Até metade do século XX, o cinema e a
fotografia não tinham essa representação, esse poder. Apenas a pintura podia
ser considerada arte erudita. As demais fontes imagéticas não passavam de arte
popular.
O grupo da Nouvelle Vague,
por meio de seus escritos e filmes, nos anos 1960, conseguiu colocar o cinema
em pé de igualdade com a chamada arte erudita, e mais ainda, transformando o
filme em filme histórico.
Dessa forma, a obra fílmica passou a
ser encarada como fonte histórica, por vezes, revelando mais sobre a época em
que foi realizada, do que sobre a época retratada.
Os dirigentes políticos, por outro
lado, já haviam descoberto a muito tempo o poder do cinema, tentando
apropriar-se do mesmo com o intuito de controlar as massas.
Até as primeiras décadas do século XX,
as fontes obedeciam a uma certa hierarquia, onde os documentos do Estado
desfrutavam de maior prestígio. O cinema, por sua vez, ainda emergente, era
considerado uma “atração de quermesse”, um “espetáculo de párias”, onde o homem
culto não seria encontrado.
O professor e o magistrado frequentavam
a ópera e o museu. Jamais estariam dispostos a se envolver com a arte popular
ou com a “máquina de idiotização”, como era considerado o cinema.
Hoje, podemos perceber que o cinema
permite uma abordagem sócio-histórica, assim como serve de testemunho. Nessa
abordagem, é necessário que se aplique a análise dos substratos
individualizados do filme, tais como as imagens (sonorizadas ou não), relações
entre os componentes, narrativa, cenário e outros. Tudo com o objetivo de
melhor compreender tanto a obra quanto a realidade nela representada.
Dessa forma, é possível analisar uma
obra como Po Zaconu (1925), adaptada de um conto de Jack
London, tendo como cenário o Canadá, mas que representa, na realidade, a
sociedade soviética do início do século XX.
Igualmente, as imagens de cinejornais
de 1917, em Petrogrado, fornecem material para rica análise histórica.
De acordo com as imagens, registradas
entre fevereiro e outubro de 1917, é possível perceber que há uma variante no
que diz respeito à participação da classe média perante as manifestações.
Em princípio, observa-se um clima de
unidade, transformando-se em indiferença e, por fim, terror. Além disso, as
imagens são claras em mostrar a grande participação de soldados e a ausência de
operários, fato confirmado pela iconografia de época.
Dessa forma, pode-se perceber que um
filme sempre vai além de seu próprio conteúdo. Além disso, devemos nos ater,
principalmente, aos lapsos do cineasta, pois é aí onde mora o real verdadeiro
do filme, e não em sua representação do passado.
Três exemplos são profícuos nessa
análise: A greve (1924), Tchapaiev (1934)
e O encouraçado Potemkin (1925).
Em A greve, Eisenstein cria
a História, por meio de um apanhado de greves ocorridas na Rússia, no período
anterior a 1917. Da mesma forma o faz em O encouraçado Potemkin.
Em Tchapaiev, a ação se
passa em 1919, com acenos a Lênin e narrativa mostrando o enlace entre a cidade
e o campo (operários e camponeses) através do romance entre o soldado Petka e a
camponesa que deseja aprender a manipular uma metralhadora, Anna.
A mensagem principal do filme é que o
homem pode morrer (o protagonista é assassinado no final), mas o partido é
eterno.
Trotsky, em 1923, já profetizava o
poder do cinema, quando o classificou como o melhor instrumento de propaganda
existente.
Dono de significado próprio, o filme
consegue escapar do controle, tanto do cineasta, que não consegue apreender a
significação da realidade que mostra, como também do censor. O texto também
consegue tal feito, entretanto, as imagens são mestras nesse quesito.
No início da Segunda Guerra Mundial,
mais precisamente entre setembro de 1939 e junho de 1940, enquanto a França, já
envolvida no confronto, não produzia filmes antinazistas, os Estados Unidos o
faziam a pleno vapor.
E não só filmes antinazistas. Nos
Estados Unidos se produziam filmes antijaponeses, filmes para justificar a
aliança com os soviéticos e filmes de ex-comunistas.
Por outro lado, surgiram, durante e
após a Segunda Guerra Mundial, filmes antimilitaristas, paródicos ou marginais,
abordando desde o espírito do ambiente militar, ao funcionamento da
instituição. Entretanto, sem abordar o seu papel social.
Há diversas vertentes possíveis de
leitura de um filme, bem como diversos recursos utilizados pela linguagem
cinematográfica.
Um desses recursos é a fusão encadeada
– utilizada em O judeu Suss – que mostra a passagem sutil de
um plano a outro, com o objetivo de simbolizar, por exemplo, a passagem de
poder dos arianos para os judeus, ou a transformação física do personagem,
mostrando-o como de “duas caras”.
A escolha da fusão encadeada reveste-se
de uma significação ideológica, consciente ou não, por parte do cineasta.
O que é observável é que o filme está
repleto de mensagens implícitas ou explícitas.
O terceiro homem (1949) foi pensado inicialmente como um filme para diversão, por
seu roteirista. Entretanto, transformou-se em tragédia política nas mãos do
cineasta.
Nesse filme não existe um “herói
positivo”. O bem e o mal se misturam em cada personagem, e a mensagem final é
que quem quer que se envolva com os soviéticos conhecerá a desonra, ou mesmo a
morte. Os americanos não tem caráter, além de serem fúteis e irresponsáveis.
A grande ilusão (1937), por sua vez, mostrava que a verdadeira realidade da
história não estava na luta entre as nações, mas na luta entre classes,
simbolizado pela fraternidade entre os combatentes entre 1914-1918. Fato que
não se manteria após o conflito. Com a paz, a barreira de classes renasceria
maior do que nunca.
Todas essas mensagens, presentes
implicitamente nos filmes, precisam de um público capaz de captá-las. Essas
apreciações identificam a cultura ao saber, significando que o cinema exerce
uma função educativa.
Assim, o governo soviético descobriu o
cinema como uma máquina a serviço da revolução, ajudando a legitimar o levante
de outubro, que por sua vez contribuiu para legitimar o próprio cinema.
Entretanto, o público das zonas rurais
não conseguia entender passagens, como por exemplo, a cena final de A
greve, aclamado por uma audição mais culta. Nem Outubro, quando
as pessoas saiam antes do final da exibição, por acharem que o filme já chegara
ao fim.
Diferentemente, Tchapaiev tornou-se
o filme n. 1 na memória dos soviéticos, ao trocar o herói coletivo de
Eisenstein, pelo homem comum, alçado ao posto de herói nacional.
O filme, oriundo do cinema ou da
televisão, tem papel importante na construção da História. Com fatos imaginários,
o cineasta torna a História inteligível. A ficção, dessa forma, dá conta das
situações de um dado tempo.
O objetivo da História é a análise dos
elos que unem o passado ao presente. Nesse aspecto, a televisão se tornou uma
“escola paralela”, principalmente entre os povos que não tem uma tradição
histórica escrita.
A ficção, presente em O
encouraçado Potemkin ou em Napoleon, ajudou a criar a
História, ou parte dela, graças ao imaginário de seus cineastas. O filme
histórico acaba por se tornar, dessa forma, uma transcrição fílmica de uma
visão da história que foi concebida por outros.
Há muitos outros filmes que contribuem
para o entendimento da sociedade. Considera-se, entretanto, que os discursos
sobre a sociedade podem emanar de quatro instâncias: das instituições
dominantes, dos oponentes dessas instituições, da memória social e das
interpretações independentes.
Um bom exemplo da consciência histórica
do cinema é encontrado no cinema americano, que considera a Guerra Civil o ato
fundador da História dos Estados Unidos, apagando a Guerra da Independência.
Um filme sobre a Guerra da
Independência deveria evocar o conflito contra a Inglaterra. Esse fato não é
desejado pelos norte-americanos.
Dessa forma, o cinema dos anos
1920-1950 não insiste nessa ruptura com a Inglaterra, tornando a Guerra Civil o
marco inicial da sociedade americana no cinema.
Importância também deve ser dada ao
fait divers, recurso de narrativa cinematográfica que diz respeito a uma ou
duas pessoas, que não modifica o curso da história, mas ajuda a compreendê-la.
Inúmeros filmes na Nouvelle vague
pertencem a essa categoria, mas M., o vampiro de Dusseldorf, foi o
pioneiro.
Trata-se de uma trama sobre garotas
assassinadas por um sádico que aterroriza a cidade de Dusseldorf no final dos
anos 1920.
Os historiadores do cinema viram nesse
filme uma espécie de reflexo da sociedade, em que os bandidos representam os
nazistas, e seu líder, o próprio furher.
De acordo com Ferro, Fritz Lang foi,
sem dúvida, o primeiro cineasta que soube fazer uma análise científica de um
caso de sociedade.
P.S.: Fiz esse resumo ouvindo O adeus de Fellini (1985)
e 3 lugares diferentes (1987), ambos da banda Fellini.
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