REPRESENTAÇÕES FÍLMICAS SOBRE
JOANA D’ARC:
A HISTÓRIA DE ACORDO COM
FLEMING E BESSON
(comunicação apresentada no IV Encontro de História Antiga e Medieval de Pernambuco)
Marcelo FERRAZ
INTRODUÇÃO
Até
as primeiras décadas do século XX, consideravam-se como fontes apenas os
documentos oriundos do Estado. Marc Ferro, em sua obra Cinema e História[1],
lista, inclusive, a hierarquia dentro das fontes. No topo da lista,
encontravam-se os Arquivos de Estado,
seguidos pelos documentos do Judiciário e do Legislativo, Jornais e Biografias.
Após o advento dos Annales, e
posteriormente na década de1970, com o trabalho pioneiro de Marc Ferro, e mais
recentemente com os estudos da Nova
História, as obras cinematográficas foram promovidas à fontes
historiográficas.[2]
Giovanni
Alves, em sua obra, Cinema e trabalho[3],
classifica o cinema como a arte mais completa do século XX, por aglutinar
outras expressões artísticas como a música, a dança e a literatura. Entretanto,
é necessário que respeitemos a natureza ficcional do cinema. Muitos filmes
falarão mais sobre a época em que foram produzidos do que sobre a época que
procuram retratar.
Dentro
do nosso assunto, Joana d’Arc tem sido tema de diversas obras cinematográficas,
explorada desde os primórdios do cinema.[4]
Na
virada do século XIX para o século XX, Georges Méliès escreveu, produziu,
dirigiu e atuou em Jeanne d'Arc (1900),
filme francês mudo, produzido em preto e branco, com apenas 19 minutos de
duração. Em 1928, o dinamarquês Carl Theodor Dreyer realizou La passion de Jeanne d’Arc, com roteiro
baseado nos documentos históricos do julgamento da francesa. Em 1948, Victor
Fleming lança Joan of Arc, baseada em
uma peça de grande sucesso na Broadway, com Ingrid Bergman como protagonista. Em
1962, o cineasta francês Robert Bresson
lançou Procès de Jeanne d'Arc,
retomando a temática do julgamento da francesa, como o fez Carl Theodor Dreyer,
em 1928. E finalmente, em 1999, Luc Besson lança Joan of Arc..
Sobre as diversas versões
fílmicas que tiveram como tema principal a imagem da heroína francesa, o
crítico de cinema Inácio Araújo, em artigo para o jornal Folha de São Paulo, faz um interessante paralelo entre as mesmas:
Dreyer
fez a sua [versão] na era muda extraindo tudo da expressividade de sua atriz,
Falconetti. [...]. Robert Bresson fez sua versão contra a de Dreyer [...],
retirando de Joana toda expressividade. [...]. A versão de Victor Fleming é
pouco feliz, talvez por ter no centro uma estrela como a atriz Ingrid Bergman.
Já a de Luc Besson corresponde, tristemente, eu diria, aos dias atuais. Temos
uma Joana d'Arc em cena, mas poderia ser também Bruce Lee. [...] sua religião é
a porrada [...] (ARAÚJO, 2006, p. 6).[5]
Com
estas palavras, Araújo consegue sintetizar as diferenças encontradas nas
diferentes versões sobre a vida e morte de Joana d’Arc levadas às telas do
cinema. Entretanto, além das disparidades, muitas características em comum se
sobressaem nas obras cinematográficas apontadas. Como produtos de um determinado
tempo, os filmes devem ser entendidos como tal, levando-se em consideração o
seu contexto de produção e o seu discurso implícito.
Dentre
estas cinco obras, resolvemos traçar um comparativo histórico entre as
películas lançadas em 1948 (Victor Fleming) e 1999 (Luc Besson).
JOANA D’ARC SEGUNDO FLEMING E BESSON
A obra
de Victor Fleming, lançada em 1948, foi produzida no período pós-guerra, no
momento em que se reconstruía a Europa, devastada pela Segunda Guerra Mundial.
Nesta obra, a religiosidade da personagem principal é um dos pontos mais fortes
observados em sua caracterização. A fotografia criada para o filme faz com que
associemos a imagem de Joana d’Arc à imagem da Virgem Maria. Ingrid Bergman
conduz sua interpretação criando uma personagem virginal e pueril em suas
falas, seus gestos e, principalmente, seu olhar.
O
roteiro escrito para o filme traz muitos pontos em comum com o relato de Régine
Pernoud[6],
que por sua vez foi escrito com base na documentação original do processo ao
qual levou Joana d’Arc à fogueira.
A
película de Luc Besson, cineasta francês, lançada na época do aniversário dos
210 anos da Revolução Francesa, mostra-nos uma Joana d’Arc mais incisiva,
colérica e, por vezes, insana. A atuação da atriz croata Milla Jovovich
conseguiu impor à Joana d’Arc de Besson uma certa aura de insanidade e
belicosidade até então não vista, em se tratando da heroína francesa.
Entretanto,
tal disparidade entre as duas narrativas são fruto de seu lugar social. As duas
cenas que tratam da morte de Joana d’Arc definem as diferenças entre as
abordagens fílmicas.
No filme
de Fleming, em seus momentos finais (2:23:56), um representante da Igreja diz:
“Vá, filha de Deus, filha da França. Vá!” Tal discurso tenta mostrar uma
ruptura dentro da própria Igreja, onde uma facção condena, deliberadamente,
Joana d’Arc, e outra a reconhece como inocente e enviada de Deus. Joana (Ingrid
Bergman), já devidamente acorrentada e sendo consumida pelas chamas, diz
candidamente: “Doce Deus, esteve sempre comigo. Esteja comigo agora!” Em suas
palavras finais, Joana repete: “Jesus! Jesus! Jesus!” Tal acontecimento vem
corroborar o relato de Pernoud (1996, p. 156), que afirma que em seus últimos
momentos de vida Joana “não parava de clamar pelo nome de Jesus”. A cena final
fica por conta do enquadramento de uma cruz cristã e da imagem do céu, onde
pode ser vista uma luz que penetra por entre nuvens escuras, iluminando o
mundo. Configurando seu discurso, Fleming nos mostra sua mensagem, tornando sua
Joana d’Arc uma santa, uma enviada do divino ao povo francês.
Besson
nos mostra o contrário. Sua cena final (2:31:48) é impressionante e reveladora.
Para Besson, a Igreja é, antes de salvadora, assassina. A cruz cristã surge por
trás das chamas que consomem o corpo da inquieta Joana d’Arc. Enquanto a Joana
de Fleming morre passivamente entre as chamas, em uma tentativa de
transformá-la em santa, a Joana de Besson morre debatendo-se, tentando a todo
custo sobreviver enquanto é devorada pelo fogo, como um animal no abatedouro,
prestes a ser sacrificado. Joana não é santa, mas humana, agindo como qualquer
outra pessoa que estivesse sendo consumida pelo calor das chamas. Aqui não há
Deus salvador, mas há uma Igreja que se refestela com o crime de um julgamento
falso, que serve apenas a interesses particulares, onde os poderosos dizem quem
deve ir para a fogueira. A Joana d’Arc de Luc Besson é insana, violenta e
humana.
CONCLUSÃO
As obras
cinematográficas permitem uma infinidade de interpretações e uma figura tão
retratada como Joana d’Arc faz com que essa exuberância de análises se
multiplique. Além disso, o cinema permite que sejamos inseridos no contexto
espaço-tempo ao qual assistimos. Por algumas horas somos levados aos campos de
batalha da Guerra dos Cem Anos, seguimos Joana d’Arc em seus embates e
assistimos ao seu julgamento e morte.
Nas
obras aqui comparadas, tivemos a oportunidade de examiná-las de acordo com a
época em que foram realizadas. Para Fleming, no final dos anos 1940, a imagem
da mulher, submissa e frágil, resulta em uma narrativa sobre Joana d’Arc
caracterizada pela passividade e devoção. Diferentemente, a heroína de Besson,
materializada em fins dos anos 1990, apresenta-se como uma mulher independente,
ativa e belicosa. Tudo isso torna a temática sobre as representações fílmicas
de Joana d’Arc extremamente atraente para aqueles que se dedicam à História,
principalmente à História Medieval.
REFERÊNCIAS CINEMATOGRÁFICAS
A PAIXÃO
de Joana d’Arc. Título original: La Passion de Jeanne d'Arc. Direção: Carl
Theodor Dryer. França: Société Générale des Films, 1928. 82 min.
GIOVANNA
d’Arco al rogo. Direção: Roberto Rossellini. Itália: Produzioni
Cinematografiche Associate, 1954. 76 min.
JOANA
D’Arc. Título original: Joan of Arc. Direção: Victor Flemming. Produção: Walter
Wanger. Estados Unidos: Sierra Pictures, 1948. 145 min.
JOAN
D’Arc de Luc Besson. Título original: Jeanne d’Arc. Direção: Luc Besson.
Produção: Patrice Ledoux. França: Gaumont, 1999. 158 min.
JEANNE
d'Arc. Direção: George Méliès. Produção: George Méliès. França: Star Film Company, 1899. 19 min.
O
PROCESSO de Joana d’Arc. Título original: Procès de Jeanne d'Arc. Direção:
Robert Bresson. Produção: Agnès Delahaie. França: 1962. 65 min.
[1] FERRO,
Marc. Cinema e História. São paulo:
Paz e Terra, 2010. p. 28.
[2] SANTIAGO
JÚNIOR, Francisco das Chagas Fernandes. Cinema e historiografia: trajetória de
um objeto historiográfico (1971-2010). História
da historiografia, Ouro Preto, n. 8, abr. 2012, P. 152.
[3] ALVES,
Giovanni. Trabalho e cinema: o mundo
do trabalho através do cinema. Londrina: Praxis, 2006. p. 286.
[4] BUENO, Rodrigo
Poreli Moura. A Cultura Medieval sob o Ângulo das Imagens Cinematográficas. XXVII Simpósio Nacional de História ANPUH,
22-26 jul. 2013. p. 3.
[5] ARAÚJO,
Inácio. Luc Besson cria Joana d’Arc da pancadaria. Folha de São Paulo. Caderno Ilustrada, p. 6, 7 nov. 2006. p. 6. Disponível
em http://acervo.folha.uol.com.br/fsp/2006/11/07/21/ Acesso em 20/06/2017.
[6]
PERNOUD, Régine. Joana D'Arc, a mulher
forte. São Paulo: Paulinas, 1996.
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