CINEMA E PRÉ-HISTÓRIA
Marcelo Ferraz
Segundo Ferro (2010), o cinema deveria ser
visto como uma contra-análise da sociedade, com a possibilidade de apelar-se
para outros saberes para melhor compreendê-la.
Para Miceli (2014), a maioria das pessoas
considera como filmes históricos apenas aqueles que tratam dos romanos, dos
faraós ou sobre guerras, não considerando a importância dos demais gêneros para
a História.
Ricon (2016) sustenta a ideia de que qualquer
filme pode ser pesquisado das mais diversas formas, e essa possibilidade é das
mais crescentes atualmente em nosso país.
Nas obras cinematográficas analisadas, partindo
do pressuposto elencado por Ferro, criamos uma ideia do que poderia ter sido o
contexto do Homem pré-histórico, de forma ficcional, respeitando, até o
possível o aspecto plausível.
Gosden nos alerta sobre esse cuidado ao se
tentar recriar esse cenário.
A dificuldade e a
escassez de evidências nos tornam desconfortavelmente cientes de que o esforço
imaginativo necessário para compreender o passado pode facilmente nos levar à
fantasia, a projetar nossas visões prosaicas do mundo na grande tela da
pré-história humana (GOSDEN, 2012, p. 17).
Annaud, com sua Guerra do fogo (1981), permite-nos visualizar toda a mística e
magia que circunda a presença do fogo entre os homens da pré-história.
No texto de abertura da película podemos
observar:
80.000 anos atrás, a
sobrevivência do homem, em uma terra vasta e inóspita dependia da posse do
fogo.
Para aqueles humanos primordiais, o fogo era um
objeto de grande mistério, desde que ninguém o tivesse criado. O fogo tinha que
ser subtraído da natureza. Tinha que ser mantido vivo – abrigado do vento e da
chuva, a salvo das tribos rivais.
O fogo era um símbolo
de poder e um sentido de sobrevivência. A tribo que possuísse o fogo, possuiria
a vida[1]
(ANNAUD, 1981).
No filme, é possível observar a utilização de
peles com o objetivo de proteção contra o frio, construção de tendas
rudimentares, fabricação de lanças e utilização do próprio fogo para a alimentação
e proteção do seu grupo social.
Tais artifícios, responsáveis pela
sobrevivência e multiplicação da raça humana, são chamados de equipamentos por
Childe (1981). Esses equipamentos permitiriam ao homem atuar sobre o mundo
exterior e reagir em função dele.
Ao contrário de outros animais, que nascem
providos de seus equipamentos naturais, o homem precisou criar e adaptar seus
próprios equipamentos para sobreviver.
Pinsky (2001) nos diz que o homem é o animal
mais inadequado para sobreviver em nosso planeta, entretanto, o mais poderoso. Em
A guerra do fogo, o cineasta deixa
evidente a utilização de equipamentos por parte do homem.
O filme conta a história de um grupo humano
pré-histórico, que atacado por uma tribo rival, perde a posse do fogo, um bem
precioso para a sua sobrevivência.
Dessa forma, alguns membros do grupo são
obrigados a partirem em busca de outra fonte de fogo para garantirem a
sobrevivência da coletividade, o que Lima (1985, p. 22) chamou de “uma
fantástica reflexão sobre o poder”.
O filme de Annaud, trata de temas relevantes no
cenário humano pré-histórico, como socialização, proteção contra predadores e
tribos rivais, além de antropofagia e sexualidade.
Em 2001 –
Uma odisséia no espaço (1968), realizado por Stanley Kubrick, alguns desses
temas são tratados, dando evidência ao espírito beligerante do homem
primordial, que em nome do bem-estar de seu grupo social, lança mão da
violência como recurso.
Ambos os filmes são de grande utilidade para o
estudo da pré-história, sendo que a obra de Kubrick serve ao propósito somente
em sua parte inicial intitulada The dawn
of man (O alvorecer do Homem).
A maquiagem, o figurino e o cenário, presentes
em A guerra do fogo, levam-nos ao
tempo-espaço pré-histórico, onde a música completa magistralmente o plano do
diretor de fazer do espectador envolver-se com a jornada que se desenvolve na
tela.
Na obra de Annaud, em sua jornada, os homens pré-históricos escapam
de predadores, digladiam-se com uma tribo antropofágica e encontram um grupo
humano mais desenvolvido, assim denominado por dominar a arte da criação do
fogo.
Esse momento é determinante no filme, pois ao
descobrir, surpreso, que alguém consegue fabricar o fogo com suas próprias
mãos, o personagem pré-histórico, inicialmente incrédulo vai às lágrimas, não
conseguindo conter a emoção.
Pontuando e criando os momentos de emoção,
tensão e alegria, a música criada por Phillipe Sarde, em A guerra do fogo, serve para envolver o espectador, além de servir
de linguagem em um filme onde não se utilizam de diálogos inteligíveis. Para os
diálogos dos personagens foi criada uma linguagem própria, derivada do alemão
primitivo e de línguas latinas pelo escritor e linguista Anthony Burguess
(LIMA, 1985).
Coincidentemente, o filme de Kubrick também tem
poucos diálogos, sendo preenchido por música clássica.
O tema de 2001
– Uma odisséia no espaço, foi composta em 1896 por Richard Strauss,
intitulada Also sprach Zarathustra, e
é um dos mais icônicos temas musicais utilizados em obras cinematográficas,
sendo facilmente reconhecida.
Na obra de Annaud, as relações sociais e
sexuais do homem pré-histórico também são discutidas. Inicialmente percebe-se a
formação da família endogâmica, como característica do grupo inicialmente tratado.
Friedrich
Engels, em sua obra A origem da família,
da propriedade privada e do Estado (1884), trata da formação familiar,
baseado em estudos antropológicos de Lewis Morgan, em A sociedade antiga (1877), que procurava tecer o desenvolvimento
social dos grupamentos humanos, o qual foi classificado em estágios de
selvageria, barbárie e civilização.
Segundo
Morgan, as famílias surgiram de forma endógena, formando laços entre irmãos, onde
havia um antepassado comum a todos, sendo chamada de família consanguínea, até
que, com o tempo, essas uniões fossem formadas de forma exógena, ou seja, por
elementos de grupos distintos, sendo chamada de família sindiásmica, tal qual
se observa em A guerra do fogo.
Nas
cenas finais do filme é observado a formação da nova família sindiásmica, com a
presença da fêmea, oriunda de grupo social distinto, agora grávida.
Os filmes A
guerra do fogo e a primeira parte de 2001
– Uma odisséia no espaço, são profícuos no estudo e no processo
ensino-aprendizagem de Pré-História.
Ambas as obras tratam de questões pertinentes
ao contexto do homem pré-histórico, e mesmo sendo apenas representações da
realidade, permitem-nos criar um cenário plausível sobre o espaço-tempo
analisado.
Mesmo sem a classificação de “filme histórico”
– ambos classificados como ficção – as obras estudadas, como muitas outras, são
reconhecidamente objetos de estudo histórico.
Tal condição, de reconhecer as obras fílmicas
como fontes de pesquisa histórica, só foi possível graças ao advento dos Annales, e posteriormente à dedicação do
historiador francês Marc Ferro, que encontrou continuidade na História
Cultural.
Cabe ao professor e pesquisador de história
saber explorar, da melhor maneira possível, este cabedal de informações, em
prol do desenvolvimento da História.
REFERÊNCIAS
BIBLIOGRÁFICAS
2001 – UMA ODISSÉIA no espaço.
Direção: Stanley Kubrick. EUA:
Metro-Goldwyn-Mayer, 1968. 1 DVD (148 min).
CHILDE, Vere Gordon. O que aconteceu na história. Rio de
Janeiro: Zahar, 1981.
ENGELS, Friedrich. A origem da família, da propriedade privada
e do Estado. São Paulo: Centauro, 2006.
FERRO, Marc. Cinema e história.
São Paulo: Paz e Terra, 2010.
A GUERRA do fogo. Direção:
Jean-Jacques Annaud. França/Canadá:
20th Century Fox, 1981. 1 DVD (100 min).
GOSDEN, Chris. Pré-História. Porto Alegre: L&PM,
2012.
LIMA, César Garcia. A guerra do fogo. Bizz. n. 18, jan. 1987, p. 22.
MICELI, Paulo. Uma pedagogia
da História? In: PINSKY, Jaime (org.). O
ensino de história e a criação do fato. São Paulo: Contexto, 2014. p.
37-52.
NAPOLITANO, Marcos. Como usar o
cinema na sala de aula. São Paulo: Contexto, 2004.
NAPOLITANO, Marcos. Fontes audiovisuais:a
história depois do papel, In: PINSKY, Carla Bessanezi (org.). Fontes históricas. São Paulo :
Contexto, 2008.
PINSKY, Jaime. As primeiras civilizações. São Paulo:
Contexto, 2001.
RICON, Leandro. Apresentação.
In: SOUZA NETO, José Maria; SCHURSTER, Karl; RICON, Leandro. Imagens em movimento. Ensaios sobre
cinema e história. Rio de Janeiro: Autografia, 2016.
For those early humans,
fire was an object of great mystery, since no one had mastered its creation.
Fire had to be stolen from nature. It had to be kept alive – sheltered from
wind and rain, guarded from rival tribes.
Fire was a symbol of power and a means of survival.
The tribe who possessed fire, possessed life.
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