COMUNICAÇÃO
DE MASSA E
OS NOVOS DEUSES DO SÉCULO XXI
-
No que acredita, Shadow?
-
Em tudo.
O último episódio da primeira temporada
de American Gods (2017) traz uma
série de situações que expõem as questões de crença, interpretação religiosa,
sagrado e profano.
A temática do episódio referido gravita
em torno de enfoques como a disputa de antigos deuses, outrora adorados pelo
homem, o surgimento de novas divindades e o canal pelo qual estas divindades
veem ao mundo, através da mídia, ou veículos de comunicação de massa, que desde
o início do século XX adentraram as residências de homens e mulheres, por todos
os continentes, impondo hábitos, estilos e modas.
Dessa forma, a mídia transforma-se no
novo altar, onde os novos deuses são venerados: o rádio, cinema e a televisão,
no século XX, e as redes sociais, no século XXI. Em um trecho do episódio
referido, o personagem Technical Boy,
dá de presente um telefone celular a uma deusa esquecida, dizendo a ela que tem
um novo altar para oferecê-la.
Em outra passagem, o mesmo personagem
adverte Wednesday, dizendo que os
tempos estão mudando e que não há como lutar contra o progresso. Em suas
palavras, nada mais será como antes. Os novos deuses – Mídia, Internet,
Globalização – já tomaram o lugar, outrora ocupado pelas antigas divindades.
Tudo o que Wednesday quer é que as pessoas voltem a orar pelos velhos deuses,
pois a oração é o que mantém as divindades lembradas, portanto vivas. O
ostracismo seria condição sine qua non
para o desaparecimento dos mesmos.
Adoração, segundo Technical Boy, tem a ver com quantidade de seguidores. Quanto maior
o número, melhor. Aqui, percebemos que se trata de uma referência direta às
redes sociais, onde celebridades surgem sorridentes, em plataformas como
Instagram ou Facebook, disputando avidamente likes de seus seguidores. Não seriam eles, os novos deuses do
século XXI?
Wednesday afirma que crer é ver. Para Certeau
(1988, p. 278), crer é “uma ‘modalidade’ da afirmação, não o seu conteúdo”, ou
seja, trata-se da forma e não do objeto. Ou melhor, a maneira como as pessoas
creem e não no que creem.
Isso pode ser observado na ocorrência
dos milagres, onde os fiéis depositam sua crença em alcançar determinado
resultado, independente da divindade a que foi feito o pedido.
No episódio de American Gods, há uma discussão entre Ostara[1]
e Mídia, onde a primeira reclama da forma como é representada pelos meios de
comunicação de massa. Mídia responde que Ostara deveria se sentir grata por, em
um mundo ateu, ainda ser lembrada.
De acordo com Certeau (1988), o
paganismo de outrora transferiu suas crenças para o cristianismo, elevado ao
posto de religião oficial do ocidente. Posteriormente, esta crença teria sido
transferida para as monarquias e repúblicas, transferindo, por sua vez, o poder
das Igrejas para a política.
Nos dias atuais, estas crenças poderiam
muito bem ter sido cedidas à mídia, que através de seus ditames transforma a
mentalidade das gerações e elege governantes, seguindo o eterno fluxo de
crenças, inicialmente imaginadas infinitas, mas que, aparentemente, tem se
esgotado.
Dessa forma, os meios de comunicação de
massa (mass media), impregnam o homem
moderno de “[...] notícias, informações e sondagens. Jamais houve uma história
que tivesse falado ou mostrado tanto” (CERTEAU, 1988, p. 287).
Observa-se uma transferência do espaço
sagrado, outrora situado nos templos (ELIADE, 1992). Hoje, com o advento dos
sistemas operacionais, que acompanham o indivíduo, em qualquer lugar, vinte e
quatro horas por dia, há o bombardeio constante dos relatos da história
imediata.
O real contado dita
interminavelmente aquilo que se deve crer e aquilo que se deve fazer. [...] A pessoa
tem que se inclinar, e obedecer àquilo que “significam”, como o oráculo de
Delfos. A fabricação de simulacros fornece assim o meio de produzir crentes e
portanto praticantes (CERTEAU, p. 287).
O smartphone, abastecido de aplicativos
e redes sociais, é o novo altar, o novo axis
mundi, permitindo que se ligue o céu (o mundo das celebridades) à Terra (o
mundo natural), transformando-se assim em “espaço sagrado”. Eliade (1992, p.
24) nos diz que “Os três níveis cósmicos – Terra, Céu, regiões inferiores –
tornaram-se comunicantes”, permitindo que se estabeleça uma “abertura” entre os
diferentes níveis, colocando o homem/mulher em contato com as divindades. No
século XXI, em contato com as celebridades.
Este mesmo espaço, outrora representado
por templos e montanhas, foi imaginado por Colombo como a elevação encontrada
no “novo mundo”. Tratava-se de algo “como uma bola bem redonda, sobre a qual
[...] estaria algo como uma teta de mulher, e a parte desse mamilo fosse a mais
elevada e mais próxima do céu” (TODOROV, 1982, p. 19), que por sua proximidade
com o firmamento, e, por conseguinte, com as divindades cristãs, colocaria o
homem em contato com Deus.
A mídia, atualmente, seria a
responsável pelo repositório contínuo de crenças e divindades. Bellotti (2011,
p. 35), destaca que os territórios que se abrem nos estudos de religiões,
encontram-se a mídia, a religião e a cultura, e afirma que essa expansão “[...]
deve-se ao próprio impacto que os diferentes tipos de meios de comunicação tem
exercido sobre o campo religioso mundial [...]”.
Moraes (2015) esclarece que o que se
entende como mass media (expressão em
inglês) ou mass midia (expressão
aportuguesada) são os meios de comunicação de massa, que atingem um vastíssimo
número de pessoas.
De acordo com o autor, o século XX
marca o início da comunicação de massa, onde o rádio surge em 1901 e se
populariza na década de 1930.
Entre “1907 a 1913, o cinema [...]
transforma-se na primeira mídia de massa da história” (COSTA, 2006, p. 37),
tanto na Europa como na América, criando-se, dessa forma, novos ícones a serem
cultuados.
Com a chegada da década de 1950, a
televisão começa a adentrar os lares, tornando-se, nas décadas posteriores, presença
obrigatória. No Brasil, “em 1970, somente 24% dos domicílios brasileiros
possuíam uma televisão, em 1980 este número chegava a mais de 56%” (ALEXANDRE,
2013, p. 128), provando, estatisticamente, a presença dos meios de comunicação
de massa na maioria das residências em nosso país.
Se por um lado, as religiões se
aproveitaram dos meios de comunicação, com o objetivo de difundirem suas
crenças e dogmas, “inspirando a circulação de bens simbólicos, de cultura
material e de consumo, e de referências religiosas” (BELLOTTI, 2011, p. 28), a
mídia (englobando todos os seus segmentos, como rádio, TV e cinema, entre
outros) soube também se transformar em divino, alçando seus astros e estrelas à
condição de deuses merecedores de culto.
O que se observa no século XXI, graças
aos avanços tecnológicos pelos quais o mass
media passou, é que adentramos em uma nova era, onde Youtubers fazem o papel de cineastas e atores, transmutando-se
também em divindades e modelos a serem seguidos, pois o objetivo do seguidor
dos dias atuais é também divinizar-se.
De
acordo com o exposto, observamos a intenção presente em American Gods, de dialogar com tais conceitos observados nos
estudos de História das Religiões. A série televisiva é profícua em tratar de
assuntos como sagrado e crença. Da mesma forma, coloca tais enfoques como pauta
de nosso mundo atual, globalizado, conectado e, por vezes, ateu.
O
personagem Shadow Moon, que, momentos antes, havia conversado sobre crença, com
um possível Jesus apático, só passa a crer no mundo invisível após ver
Wednesday transmutar-se em Odin, ordenando às forças da natureza que
eliminassem seus inimigos, assassinando-os à sangue frio.
Segundo
Wednesday, os deuses são reais, desde que as pessoas acreditem neles. Mídia
chega a questionar: o que aconteceria com Deus se as pessoas decidissem que Ele
não existe? A crença, de acordo com a
série, é o que mantém as divindades vivas e as pessoas criam deuses quando não
entendem como algo acontece, procurando uma explicação sobrenatural para a
questão. Dessa forma, há o mundo físico, onde os humanos vivem e o mundo
invisível, morada dos deuses.
Para as celebridades da música, TV e
cinema, as plataformas de redes sociais colocam os mesmos frente à frente com
seus seguidores, eliminando a figura do sacerdote, personagem responsável,
anteriormente, a realizar a intermediação entre o deus e seu fiel.
REFERÊNCIA ÁUDIO VISUAL
AMERICAN Gods. Produtores: Bryan Fuller, Michael Green, Neil Gaiman. EUA: Starz, 2017.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
ALEXANDRE,
Ricardo. Dias de luta: o rock e o
Brasil dos anos 80. Porto Alegre: Arquipélago Editorial, 2013.
CERTEAU,
Michel de. A invenção do cotidiano.
Petrópolis: Vozes, 1988.
CHILDE,
Vere Gordon. O que aconteceu na História.
Rio de janeiro: Zahar, 1981.
COSTA,
Flávia Cesarino. Primeiro cinema. In: MASCARELLO, Fernando. História do cinema mundial. Campinas,
SP: Papirus, 2006.
ELIADE,
Mircea. O sagrado e o profano. São Paulo:
Martins Fontes, 1992.
TODOROV, Tzvetan. A conquista da América. A questão do
outro. São Paulo: Martins Fontes, 1982.
BELLOTTI, Karina
Kosicki. História das religiões: conceitos e debates na era contemporânea. História: Questões & Debates,
Curitiba, n. 55, p. 13-42, jul. dez. 2011. Editora UFPR.
NUNES, Elton de
Oliveira. Teoria e metodologia em História das Religiões no Brasil: o estado da
arte. História: Questões & Debates,
Curitiba, n. 55, p. 43-58, jul. dez. 2011. Editora UFPR.
LIA, Cristine
Fortes. História das Religiões e religiosidades: contribuições e novas
abordagens. Aedos, n. 11, set. 2012,
p. 549-563.
[1]
Eostre, Ēostre, Ostara ou Ostera é a deusa da fertilidade, amor e do
renascimento na mitologia anglo-saxã, na mitologia nórdica e mitologia
germânica. Na primavera, lebres e ovos coloridos eram os símbolos da
fertilidade e renovação a ela associados. De seus cultos pagãos originou-se o termo
Inglês Easter e Ostern em alemão. Disponível em https://pt.wikipedia.org/wiki/Eostre
Acesso em 24/09/2017.
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Observação: somente um membro deste blog pode postar um comentário.