quarta-feira, 25 de julho de 2018



COMUNICAÇÃO DE MASSA E
 OS NOVOS DEUSES DO SÉCULO XXI


- No que acredita, Shadow?
- Em tudo.













Crer é ver. Com essas palavras, Wednesday tenta explicar a seu discípulo, Shadow Moon, como as pessoas passam a acreditar no sagrado, ou na manifestação do invisível no mundo material.
O último episódio da primeira temporada de American Gods (2017) traz uma série de situações que expõem as questões de crença, interpretação religiosa, sagrado e profano.
A temática do episódio referido gravita em torno de enfoques como a disputa de antigos deuses, outrora adorados pelo homem, o surgimento de novas divindades e o canal pelo qual estas divindades veem ao mundo, através da mídia, ou veículos de comunicação de massa, que desde o início do século XX adentraram as residências de homens e mulheres, por todos os continentes, impondo hábitos, estilos e modas.
Dessa forma, a mídia transforma-se no novo altar, onde os novos deuses são venerados: o rádio, cinema e a televisão, no século XX, e as redes sociais, no século XXI. Em um trecho do episódio referido, o personagem Technical Boy, dá de presente um telefone celular a uma deusa esquecida, dizendo a ela que tem um novo altar para oferecê-la.
Em outra passagem, o mesmo personagem adverte Wednesday, dizendo que os tempos estão mudando e que não há como lutar contra o progresso. Em suas palavras, nada mais será como antes. Os novos deuses – Mídia, Internet, Globalização – já tomaram o lugar, outrora ocupado pelas antigas divindades.
Tudo o que Wednesday quer é que as pessoas voltem a orar pelos velhos deuses, pois a oração é o que mantém as divindades lembradas, portanto vivas. O ostracismo seria condição sine qua non para o desaparecimento dos mesmos.
Adoração, segundo Technical Boy, tem a ver com quantidade de seguidores. Quanto maior o número, melhor. Aqui, percebemos que se trata de uma referência direta às redes sociais, onde celebridades surgem sorridentes, em plataformas como Instagram ou Facebook, disputando avidamente likes de seus seguidores. Não seriam eles, os novos deuses do século XXI?
Wednesday afirma que crer é ver. Para Certeau (1988, p. 278), crer é “uma ‘modalidade’ da afirmação, não o seu conteúdo”, ou seja, trata-se da forma e não do objeto. Ou melhor, a maneira como as pessoas creem e não no que creem.
Isso pode ser observado na ocorrência dos milagres, onde os fiéis depositam sua crença em alcançar determinado resultado, independente da divindade a que foi feito o pedido.
No episódio de American Gods, há uma discussão entre Ostara[1] e Mídia, onde a primeira reclama da forma como é representada pelos meios de comunicação de massa. Mídia responde que Ostara deveria se sentir grata por, em um mundo ateu, ainda ser lembrada.
De acordo com Certeau (1988), o paganismo de outrora transferiu suas crenças para o cristianismo, elevado ao posto de religião oficial do ocidente. Posteriormente, esta crença teria sido transferida para as monarquias e repúblicas, transferindo, por sua vez, o poder das Igrejas para a política.
Nos dias atuais, estas crenças poderiam muito bem ter sido cedidas à mídia, que através de seus ditames transforma a mentalidade das gerações e elege governantes, seguindo o eterno fluxo de crenças, inicialmente imaginadas infinitas, mas que, aparentemente, tem se esgotado.
Dessa forma, os meios de comunicação de massa (mass media), impregnam o homem moderno de “[...] notícias, informações e sondagens. Jamais houve uma história que tivesse falado ou mostrado tanto” (CERTEAU, 1988, p. 287).
Observa-se uma transferência do espaço sagrado, outrora situado nos templos (ELIADE, 1992). Hoje, com o advento dos sistemas operacionais, que acompanham o indivíduo, em qualquer lugar, vinte e quatro horas por dia, há o bombardeio constante dos relatos da história imediata.

 O real contado dita interminavelmente aquilo que se deve crer e aquilo que se deve fazer. [...] A pessoa tem que se inclinar, e obedecer àquilo que “significam”, como o oráculo de Delfos. A fabricação de simulacros fornece assim o meio de produzir crentes e portanto praticantes (CERTEAU, p. 287).

O smartphone, abastecido de aplicativos e redes sociais, é o novo altar, o novo axis mundi, permitindo que se ligue o céu (o mundo das celebridades) à Terra (o mundo natural), transformando-se assim em “espaço sagrado”. Eliade (1992, p. 24) nos diz que “Os três níveis cósmicos – Terra, Céu, regiões inferiores – tornaram-se comunicantes”, permitindo que se estabeleça uma “abertura” entre os diferentes níveis, colocando o homem/mulher em contato com as divindades. No século XXI, em contato com as celebridades.
Este mesmo espaço, outrora representado por templos e montanhas, foi imaginado por Colombo como a elevação encontrada no “novo mundo”. Tratava-se de algo “como uma bola bem redonda, sobre a qual [...] estaria algo como uma teta de mulher, e a parte desse mamilo fosse a mais elevada e mais próxima do céu” (TODOROV, 1982, p. 19), que por sua proximidade com o firmamento, e, por conseguinte, com as divindades cristãs, colocaria o homem em contato com Deus.
A mídia, atualmente, seria a responsável pelo repositório contínuo de crenças e divindades. Bellotti (2011, p. 35), destaca que os territórios que se abrem nos estudos de religiões, encontram-se a mídia, a religião e a cultura, e afirma que essa expansão “[...] deve-se ao próprio impacto que os diferentes tipos de meios de comunicação tem exercido sobre o campo religioso mundial [...]”.
Moraes (2015) esclarece que o que se entende como mass media (expressão em inglês) ou mass midia (expressão aportuguesada) são os meios de comunicação de massa, que atingem um vastíssimo número de pessoas.
De acordo com o autor, o século XX marca o início da comunicação de massa, onde o rádio surge em 1901 e se populariza na década de 1930.
Entre “1907 a 1913, o cinema [...] transforma-se na primeira mídia de massa da história” (COSTA, 2006, p. 37), tanto na Europa como na América, criando-se, dessa forma, novos ícones a serem cultuados.
Com a chegada da década de 1950, a televisão começa a adentrar os lares, tornando-se, nas décadas posteriores, presença obrigatória. No Brasil, “em 1970, somente 24% dos domicílios brasileiros possuíam uma televisão, em 1980 este número chegava a mais de 56%” (ALEXANDRE, 2013, p. 128), provando, estatisticamente, a presença dos meios de comunicação de massa na maioria das residências em nosso país.
Se por um lado, as religiões se aproveitaram dos meios de comunicação, com o objetivo de difundirem suas crenças e dogmas, “inspirando a circulação de bens simbólicos, de cultura material e de consumo, e de referências religiosas” (BELLOTTI, 2011, p. 28), a mídia (englobando todos os seus segmentos, como rádio, TV e cinema, entre outros) soube também se transformar em divino, alçando seus astros e estrelas à condição de deuses merecedores de culto.
O que se observa no século XXI, graças aos avanços tecnológicos pelos quais o mass media passou, é que adentramos em uma nova era, onde Youtubers fazem o papel de cineastas e atores, transmutando-se também em divindades e modelos a serem seguidos, pois o objetivo do seguidor dos dias atuais é também divinizar-se.
De acordo com o exposto, observamos a intenção presente em American Gods, de dialogar com tais conceitos observados nos estudos de História das Religiões. A série televisiva é profícua em tratar de assuntos como sagrado e crença. Da mesma forma, coloca tais enfoques como pauta de nosso mundo atual, globalizado, conectado e, por vezes, ateu.
O personagem Shadow Moon, que, momentos antes, havia conversado sobre crença, com um possível Jesus apático, só passa a crer no mundo invisível após ver Wednesday transmutar-se em Odin, ordenando às forças da natureza que eliminassem seus inimigos, assassinando-os à sangue frio.
Segundo Wednesday, os deuses são reais, desde que as pessoas acreditem neles. Mídia chega a questionar: o que aconteceria com Deus se as pessoas decidissem que Ele não existe?  A crença, de acordo com a série, é o que mantém as divindades vivas e as pessoas criam deuses quando não entendem como algo acontece, procurando uma explicação sobrenatural para a questão. Dessa forma, há o mundo físico, onde os humanos vivem e o mundo invisível, morada dos deuses.
Para as celebridades da música, TV e cinema, as plataformas de redes sociais colocam os mesmos frente à frente com seus seguidores, eliminando a figura do sacerdote, personagem responsável, anteriormente, a realizar a intermediação entre o deus e seu fiel.
REFERÊNCIA ÁUDIO VISUAL

AMERICAN Gods. Produtores: Bryan Fuller, Michael Green, Neil Gaiman. EUA: Starz, 2017.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

ALEXANDRE, Ricardo. Dias de luta: o rock e o Brasil dos anos 80. Porto Alegre: Arquipélago Editorial, 2013.
CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano. Petrópolis: Vozes, 1988.
CHILDE, Vere Gordon. O que aconteceu na História. Rio de janeiro: Zahar, 1981.
COSTA, Flávia Cesarino. Primeiro cinema. In: MASCARELLO, Fernando. História do cinema mundial. Campinas, SP: Papirus, 2006.
ELIADE, Mircea. O sagrado e o profano. São Paulo: Martins Fontes, 1992.
TODOROV, Tzvetan. A conquista da América. A questão do outro. São Paulo: Martins Fontes, 1982.
BELLOTTI, Karina Kosicki. História das religiões: conceitos e debates na era contemporânea. História: Questões & Debates, Curitiba, n. 55, p. 13-42, jul. dez. 2011. Editora UFPR.
NUNES, Elton de Oliveira. Teoria e metodologia em História das Religiões no Brasil: o estado da arte. História: Questões & Debates, Curitiba, n. 55, p. 43-58, jul. dez. 2011. Editora UFPR.
LIA, Cristine Fortes. História das Religiões e religiosidades: contribuições e novas abordagens. Aedos, n. 11, set. 2012, p. 549-563.


[1] Eostre, Ēostre, Ostara ou Ostera é a deusa da fertilidade, amor e do renascimento na mitologia anglo-saxã, na mitologia nórdica e mitologia germânica. Na primavera, lebres e ovos coloridos eram os símbolos da fertilidade e renovação a ela associados. De seus cultos pagãos originou-se o termo Inglês Easter e Ostern em alemão. Disponível em https://pt.wikipedia.org/wiki/Eostre Acesso em 24/09/2017.

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